O QUE FAZEM OS SOLITÁRIOS????

O QUE FAZEM OS SOLITÁRIOS????
a solidão perturba, machuca, mas como toda a indicação de um bom médico... Nada em excesso faz mal - ou melhor, quase nada! rsrs... A solidão, às vezes faz bem! Porém Ana, deixou sua vida, por 2 anos se tornar um mar solitário... LEMBRANÇAS DE UMA ADOLESCENTE!

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

2º Capítulo do livro LEMBRANÇAS DE UMA ADOLESCENTE

- Vá se divertir – disse ela quando estávamos chegando ao Cercado. – Você vai adorar o Róger.

Suas sobrancelhas se uniram de preocupação, seus olhos estavam aflitos.

- Algum problema? – eu disse, tentando decifrar o seu olhar angustiado.

- Qualquer coisa, me liga – entregou-me ela o celular.

Como exatamente da primeira vez, o Cercado estava com aquele mesmo fedor, como pode alguém marcar um encontro num lugar tão fedido?

- Argh... – fiz careta ao respirar aquele ar poluído, contaminado pelos bichos.

Claudia já tinha ido embora, ela prometeu que em um minuto o Róger estaria ali.

- Bom dia – disse ele quando chegou. Pouco depois de trinta segundos que Claudia saiu.

Não consegui responder de imediato; estava paralisada. Fechei a boca rapidamente, temendo que ele percebesse a minha reação: Deslumbrada!

- Você é exatamente igual à descrição do Jonas. Linda! – ele estava encantado, porém, não mais do que eu.

- Bom di... Bom dia – gaguejei.

Alto, aproximadamente dois palmos maiores do que eu, cabelos curtos e castanhos claro, claríssimo. Olhos verdes cintilantes, pele morena clara, bochechas rosadas, numa perfeição incomparável. Corpo malhado, apresentando ter uns vinte anos. Enfim, ele era deslumbrantemente belo.

Eu estava com o cabelo amarrado em um rabo de cavalo, porém minha longa franja estava livre. Claudia havia me ajudado com a maquiagem. Eu me sentia bonita no momento, mas tenho certeza de que Róger era muito mais.

Eu estava certa de que um carinha de festa junina apareceria na minha frente com um sotaque jeca, afirmando ser o tal Róger – felizmente eu estava enganada.

- Verdes – ofeguei-me. Seus olhos são verdes? – perguntei.

- Sim e os seus são azuis – ele sorria. – Qual é o problema? – perguntou-me delicadamente.

- É que você não se parece absolutamente em nada com seus irmãos – sacudi minha cabeça, eu estava tonta.

Em momento algum eu queria desmerecer a beleza de Claudia, e nem a simpatia de Jonas – que também era belo, mas Róger parecia que continha quase todos os genes de beleza da família.

- Sou filho adotivo. Isso responde a sua curiosidade? – ele ainda sorria.

- Faz sentido – respondi. – Faz muito sentido.

Ele tentava esconder ao máximo seu sorriso, acredito que não queria parecer “desumilde.”

- Por que você quer me conhecer? – perguntei depois de uma pausa.

Ele empurrou minha cadeira de rodas para cima de um lindo gramado. Sentou-se em um tronco de árvore a minha frente.

- Claudia tirou uma foto sua, há alguns anos. Desde quando olhei para aquele retrato sempre tive vontade de te conhecer.

Fiquei vermelha, sentia meu rosto ferver, minha cabeça doía, conseguia sentir cada gotinha de sangue que se acumulavam em minhas bochechas.

- Eu não sei o que dizer – escondi meu rosto com as mãos. Era ridícula essa cena, porém eu estava muito nervosa.

- Não fique preocupada, eu só quero conversar com você – propôs ele.

Por fim ele se levantou, empurrou o tronco para perto e sentou-se ao meu lado.

- Qual é a sua matéria preferida? – perguntou-me ele, baixinho.

- Matéria? Matéria de escola? – eu tropeçava nas palavras a todo instante. – É claro que é matéria de escola – murmurei a mim mesma.

Fiquei ainda mais nervosa quando vi seu rosto se repuxar num outro sorriso.

- Isso – incentivou-me ele.

- Gosto muito de matemática – respondi olhando para o chão. – É como se eu estivesse re...

- Estivesse resolvendo seus próprios problemas? – interferiu ele.

Encaramo-nos em silêncio por um longo tempo.

- Como sabia o que eu iria falar? – perguntei.

- Claudia – respondeu ele, erguendo uma das sobrancelhas. Foi o suficiente.

- Claudia anda falando de mim? – eu sorri, envergonhada.

- Só um pouquinho, por volta de umas duas horas por dia quando ela nos visita – disse ele, fofocando.

- E você costuma decorar o que eu digo? – eu estava curiosa com a resposta.

- Às vezes – murmurou ele.

Róger além de ser lindo, era muito educado, carinhoso, dócil, cheiroso... Enfim, ele era praticamente perfeito.

Ele pegou minha mão, quando eu disse que teria que ir embora.

- Vou te visitar, na cabana – sorriu.

- Vai... Você vai me visitar? – estremeci.

- Se você quiser, é claro – respondeu ele.

- Tudo bem – eu disse devagar. – Mas você não trabalha?

- Vou para a loja somente á tarde – ele passava seus dedos levemente sobre minha mão, secando o suor que estava nela.

Seus olhos estavam concentrados nesse movimento. Eu aproveitei sua distração para admirá-lo um pouco mais.

Durante nossa conversa ele me contou que trabalha como administrador de uma loja de móveis, que adora gatos e cachorros e também contou que sua família o adotou quando ele tinha dois anos, pois seus pais biológicos faleceram num acidente de carro.

Posso considerar esse primeiro encontro – o primeiro encontro da minha vida – como o mais esquisito e fascinante que já tive, ou melhor, que já pensei em ter.

- Vamos, Ana? – era a Claudia. Eu nem havia notado sua presença.

- Vamos – concordei.

- O que você achou dele? – Claudia estava curiosa, mal havíamos voltado para o quarto e ela já estava preparada para o interrogatório.

- Ele é legal – dei-lhe uma resposta evasiva.

- Está achando que eu vou me contentar com “Legal”? Vamos, me dê uma opinião legível. Quero detalhes.

- Ele é bonito e inteligente. Contente? – perguntei num tom sarcástico.

- Eu não te falei? Meu irmão é o “cara”! – ela estava eufórica demais.

- Quanta empolgação, hein Claudia? Até parece que o encontro foi seu.

- Desculpe Ana. É que o Róger sempre me escuta falar sobre você e ele se apaixona fácil, e...

- Bem, já conversamos sobre suas tagarelices, mas vamos deixar essa história de “se apaixonar facilmente” para depois, está bem? – eu estava precisando ficar sozinha.

- Tudo bem – Claudia entendeu minha necessidade de isolamento, logo saiu do quarto.

Eu estava aliviada ao ver que meus pais não notaram a minha ausência.

- Ana. Posso falar com você? – era Jonas. Ele estava batendo na porta.

- Pode entrar Jonas – minha voz demonstrava dúvida.

Jonas abriu a porta cuidadosamente. Meu corpo estremeceu. Pode ser que Róger tenha lhe mandado dizer algo para mim.

- Oi – seus olhos vagavam pelo quarto.

- Sente-se – apontei uma cadeira. – Algum problema? – perguntei dando-lhe espaço para falar.

- Não, problema nenhum – percebi que ele tinha uma sacola enorme entre os braços.

- Então? – insisti.

- Seu aniversário foi há dois dias, não é? – ele estava com o ar ofegante, como se tivesse corrido quilômetros para chegar até ali.

- Sim, por quê? – perguntei sorrindo ao vê-lo tão nervoso.

- É que eu trouxe... Um presente – ele falava lentamente.

- Presente? – acho que Jonas não sabia que eu era contra comemorar meus aniversários.

- Feliz aniversário atrasado – disse ele, entregando-me a caixa embrulhada.

- Quero que você saiba que eu não comemoro meus aniversários, porém vou aceitá-lo porque pelo jeito você não sabia disso, não é?

Sua expressão foi o bastante para responder, ele estava tão assustado que parecia ter visto um “bicho papão.”

- Você não comemo... – sua voz falhou completamente.

- Não, eu não comemoro aniversário – terminei a frase, a voz firme como rocha.

Peguei o presente. Minhas mãos tremiam, eu estava nervosa, mas também estava feliz.

- Obrigada – eu disse, enquanto abria o embrulho.

- Seus olhos se parecem com os olhos daquelas crianças pobres que nunca ganham nada e quando ganham...

Eu o olhei com uma cara de devolução, imediatamente ele se calou.

- Desculpe – disse ele.

- Um poncho? – perguntei quando abri.

- Isso é ruim? Eu o achei tão bonito na manequim... – entristeceu-se ele.

- Não. Ele é lindo, mas é que... – eu franzi a testa, tentava encontrar a melhor forma de me explicar. – É que em Laranjais... Acho um pouco difícil de usá-lo.

- Posso destrocar – ele ainda estava triste.

- Não. Não precisa. Prometo encontrar uma ocasião para vesti-lo.

Ele me olhou, parecia acreditar. Eu controlei minha expressão, pois nunca pensaria em usar aquele poncho.

Verde musgo, cintilante, com pedrinhas de lantejoula. Além de ser super cafona, era de lã, totalmente fora de cogitação.

- Verde, que legal – tentei parecer animada com aquela catástrofe da moda.

Na verdade, eu não entendia nada sobre moda, não tinha estilo de modelo ou jeito de adolescente pirada que compra tudo o que está bombando no momento, mas eu me recusaria com toda a certeza a usar aquele poncho esquisito.

- Que bom que gostou – Jonas estava alegre. – Agora que vai ser minha cunhada, precisa andar bonita – ele soltou uma gargalhada.

- Quer dizer que eu não sou bonita? – perguntei forçando um sorriso. Ignorei-o em relação à palavra “cunhada”.

- Pelo contrário. Você é linda – ele se inclinou dando-me um beijo na bochecha. – É como uma irmã para mim – disse ele, antes que eu ficasse confusa em relação aos seus sentimentos.

Jonas era um rapaz muito avançado, precipitado.

- Irmã? Mas nós nos conhecemos ontem – eu ri num descuido, pois não queria parecer insensível.

- Claudia fala muito de você e nesse pouco tempo, pude constatar que tudo era verdade, você é incrível, Ana. Se parece com a minha irmã Carolina.

Ele estava com os olhos distantes.

- Nossa. Obrigada – fiquei emocionada com o elogio.

- Claudia e eu fazemos muito gosto pelo seu romance com o Róger – ele estava pensativo.

- E sua irmã? A Carolina? Onde ela está? – perguntei, tentava fazê-lo voltar ao planeta terra.

Jonas pulou da cadeira, certamente pelo arrepio que notei em seus braços.

- Ela casou-se com um idiota. Há quatro anos atrás ele a viu conversando com um cara na rua, era um primo nosso desconhecido por ele, ficou com tanto ciúme que a matou com um golpe na cabeça – Jonas ficou enfurecido.

- Meu Deus – gritei, eu não sabia o que dizer. – Desculpe-me, eu não...

- Não esquenta – Jonas ficou mais calmo.

Olhei para ele, eu piscava constantemente, queria poder dizer algo reconfortante, porém minha cabeça não formulava nada no momento. Estava completamente oca.

- Você além de ter os traços dela, fala como se fosse a própria Carol – seu rosto estava coberto por lágrimas.

- Me desculpe, por favor, não foi minha intenção deixá-lo triste... – minha vontade era de desaparecer.

- Vou me controlar – disse ele, com um sorrisinho torto, envergonhado.

Ficamos parados, olhei para o poncho que ainda estava em minha mão.

- Vou usá-lo com muito carinho. Em memória a sua irmã – eu disse, enquanto alisava o poncho verde musgo.

- Você é dez – disse Jonas levantando-se.

- Já vai? – perguntei.

- Preciso dar água aos bezerros – ele limpava rapidamente as lágrimas de seu rosto.

- Quer ajuda? – eu disse, pigarreando para me livrar do nó que se instalava em minha garganta.

Ele arregalou os olhos, encarou minha cadeira de rodas, sei que não era a intenção dele me ofender, porém sua expressão me deixou triste.

- Ah, entendi – eu disse numa voz abatida.

- Não... Quero dizer, sim, pode me ajudar. Só precisamos tomar certos cuidados – disse ele, tropeçando nas palavras.

- Eu não quero atrapalhar, Jonas – ele sacudiu a cabeça, estava visivelmente preocupado com o que iria falar.

- Vai ser legal se você for. Os animais gostam de você. Só preciso que a Claudia fique conosco, tenho medo de que eu não saiba cuidar bem de você, Ana.

- Tudo bem. Então eu vou chamá-la – eu fiquei animada.

- Legal – Jonas ficou mais aliviado.

Coloquei o poncho em cima da cama junto com o embrulho. Jonas me ajudou com a cadeira de rodas, fomos procurar a Claudia, ela nunca ficava longe, contudo a encontramos rapidamente.

Ela estava numa alegria contagiante.

- Olá cunhadinha? – disse ela, risonha.

- Claudia. Por favor? Meus pais não podem saber – murmurei.

Ela fingiu trancar a boca com um cadeado.

- Minha boca será um túmulo – ela gargalhou.

- Boboca – sussurrei.

Estávamos de frente para a cabana de frutas, o lugar cheirava a laranja.

- O que vocês querem? – Claudia me conhecia muito bem, sabia que aquela minha cara era de quem estava precisando de ajuda.

- Me acompanha até o Cercado? Quero ajudar o Jonas a dar água para os bezerros – supliquei.

- Sua mãe não vai gostar – disse ela a mim, em dúvida.

- Ela nem acordou ainda – insisti.

- Tudo bem – disse Claudia, empurrando minha cadeira alegremente.

Jonas olhou-me, piscou os olhos assustados.

- Conseguimos – suspirei.

Fomos correndo para o Cercado, literalmente. Claudia empurrava minha cadeira com tanta velocidade que parecia uma criança de dois anos brincando com o seu carrinho.

Os bezerros estavam amarrados longe de suas mães, caso o contrário eles sugariam todo o leite que Jonas venderia.

- Olha como eles estão alegres ao nos ver – eu estava perplexa com a inteligência dos bezerrinhos.

- É por causa do Jonas – disse Claudia. – Toda vez que ele os desamarra é para levá-los a bica de água.

- Eca, que nojo! Vocês me levaram para tomar água na mesma bica que os terneiros? – perguntei fazendo careta.

Jonas riu.

- Não sua boba. Vamos levá-los para outra bica, para a bica dos bezerros!

- Mas não tem problema se nós levarmos eles para a mesma bica, pois a água é corrente – disse Claudia, rindo da minha cara.

- Eu não entendo de mina, meu negócio é torneira. – ri junto com eles.

- Você é impossível, Ana – gritou Jonas lá de trás de uma árvore. Ele estava desamarrando o último bezerro.

- O que deseja que eu faça? – perguntei a Jonas, prestativa.

- Quero que corra atrás dos bezerros quando eu der o sinal – ele riu.

- É sério? – perguntei compungida. – Está falando sério?

- Está com medinho? – disse ele, provocando-me.

- Não... Quer saber? Eu estou sim. E se eles me derem um coice? Como estou na cadeira de rodas, seu alvo acertaria diretamente a minha cara e...

- Quanta asneira – Jonas revirou os olhos, rindo. – Eles são mansos demais para tamanha barbaridade.

- Tem certeza? – perguntei com a voz trêmula.

- Tenho. Se não eu pediria para você ficar em casa ao invés de me ajudar. Ele sorria com mais vontade.

- Coragem, Ana – incentivou-me Claudia, rachando de rir.

- Agora! – gritou Jonas logo em seguida.

Corajosamente eu virei minha cadeira de rodas para a direção dos bezerros, embalei-a com tanta velocidade que não conseguia nem ver as árvores direito. Os pobres bezerros corriam aceleradamente em direção a mina de água. Foi aí que a “ficha caiu”. Eu não sabia onde era a mina de água, na verdade, quem me guiava eram os próprios bezerros aflitos.

- Jonas! – gritei de raiva.

Jonas estava escorado em um pinheiro, chorava de rir, mantinha a mão na barrida. Era uma imagem engraçada de se ver.

- Por que eu estou correndo atrás dos bezerros? – gritei com mais raiva.

- Porque você é uma boba – respondeu ele, soluçando. – Os bezerros sabem o caminho da mina, eu só preciso soltá-los – ele sentou-se nos pés da árvore, estava tonto de tanto rir. – Eles vão sozinhos – disse ele por fim.

- Quanta maldade – murmurou Claudia. Ela não ria na mesma intensidade que ele.

- Eu te odeio – começei a rir também.

Meu rosto estava suado, meus braços ardiam de tanto embalar a cadeira. Eu arfava de tanto impulsioná-la. Meu cabelo estava solto sem o meu consentimento, pois eu havia perdido minha presilha no meio do caminho.

- Vai ter troco – respondi gargalhando.

Jonas e Claudia tornaram-se meus melhores amigos e confidentes naquele acampamento. Eu estava me sentindo livre e feliz.

Encostei minha cadeira de rodas na mesma árvore que Jonas estava sentado, Claudia estava sentada no chão a nossa frente.

- Achei que você ficaria brava com a brincadeira – disse ela, com a voz suave.

- Com certeza eu ficaria, porém, resolvi perdoar – eu ainda estava ofegante.

- Legal – retrucou Jonas. – Porque isso é só o começo.

- Quer me torturar? – eu soluçava a cada meio segundo. – Fique sabendo que você não vai ter paz enquanto eu estiver aqui – ele fez cara de medo.

- Vocês parecem duas criançinhas, será possível que eu sou a única sensata entre o bando? – Claudia brincava com um galho de árvore.

- Sensata... Você? – Jonas estourou uma gargalhada aguda.

- Ana? – nós três viramos para ver quem chamava.

Sob toda aquela clareza do verde das gramas, estava ele com seu rostinho bochechudo, sorrindo como só ele conseguia sorrir.

- Jacson? – perguntei ao ver aquele pontinho gordo no meio da pastagem.

Ele alargou ainda mais o sorriso, dando agora para ver os seus dentes brancos.

- Oi – disse ele, com sua voz simpática.

- Jack, o que você está fazendo aqui? – eu fiquei preocupada.

- Papai e eu vamos pescar no açude atrás do Cercado – ele não conseguia esconder a alegria.

Jacson estava com uma camiseta de botão amarela e suas calças ultrapassavam o umbigo, certamente mamãe o vestira.

- Consegue consertar isto? – perguntou-me ele, referindo-se a sua roupa.

- Vem aqui – eu disse encabulada. – abaixei a calça e tirei a camiseta de dentro dela. – Pronto, está melhor.

- Obrigada, Ana – disse ele com uma carinha aliviada. – Oi Jonas? – eles se cumprimentaram com uns apertos de mão esquisitos. – Oi Claudinha? – repetiu o gesto.

- O que é isso? – perguntei referindo-me aos cumprimentos.

- É a moda da garotada – Jacson falava, enquanto suas pequenas mãos o acompanhavam em gestos.

Logo vi meu pai se aproximar de nós.

- Olá meninos? – ele estava ridículo, chapéu de caubói, um palito entre os dentes e as varas de pesca nas mãos.

- Oi – respondemos em coro.

- Acordaram junto com as galinhas? – perguntou ele, rindo um pouco sem graça.

- Não pai, é que o senhor costuma acordar tarde. Agora são exatamente onze e meia da manhã – eu disse olhando para meu relógio de pulso.

- Obrigada garota do relógio – ele riu com vontade.

- De nada, senhor caubói – todos riram, aproveitaram minha crítica para soltar a gargalhada que estava presa.

- Está tão ruim assim? – perguntou ele, olhando para o seu modelito.

- Está tipo assim... Cafona, pai – gargalhamos.

- Quanta sinceridade – resmungou ele.

- Não liga não, seu Marcos – disse Jonas. – As mulheres mais velhas gostam desse tipo de visual.

- Muito obrigado Jonas – papai exaltou o Muito obrigado.

- Querem vir conosco? – perguntou Jacson, educadamente.

- Acho que não. Eu odeio peixe – respondi, mas virei meu rosto para analisar a expressão dos meus amigos, quem sabe eles queriam ir, e eu naquela cadeira de rodas com toda certeza atrapalharia. Ninguém se interessou.

- Então... Tchau, até o almoço – Jack acenou com as mãos.

Minha barrica roncou quando ele pronunciou a palavra almoço.

- Estou com fome – murmurei enquanto afundava meus dedos na barriga barulhenta.

- Vamos voltar. Dona Julia já deve ter preparado o almoço – disse Claudia.

Julia era a empregada da família. Cuidava dos afazeres domésticos da casa. Inclusive do almoço. Estava na família desde o falecimento da mãe de Claudia.

De repente, Jonas começou a rir sem parar.

- O que foi? – perguntei assustada, ele parecia com um louco.

- O que o Róger vai dizer quando contarmos a ele sobre seu mico? – Jonas estava decidido a contar.

- Você não faria tamanha crueldade, faria? – tentei mudar sua decisão.

- Não conte com isso – sussurrou Claudia, empurrando minha cadeira.

- Jonas? Assim ficará difícil me tornar sua cunhada. Além de eu ser paraplégica, me comporto como uma boba? Róger não vai gostar...

Parei de falar quando percebi que o sorriso de Jonas havia sumido.

- Falei alguma coisa que não devia? – perguntei assustada.

Claudia parou a cadeira, os dois me olharam com amargura no rosto.

- Nenhum de nós, inclusive Róger, incomoda-se com o fato de você ser paraplégica. Será que você nunca vai entender isso, Ana? – Claudia estava exaltada.

- Eu me incomodo – falei irritada.

Eu estava cansada de ficar repetindo sempre as mesmas palavras, era como se eu gostasse da dor aos olhos deles, mas esta não era a verdade – a verdade era que nenhum deles estava passando por aquilo, por isso era fácil falar, retrucar minha própria rejeição, minha fúria pela nova vida. – Eles não sabiam o que era ser paraplégica!

- Bobagem, isso só fará você sofrer – resmungou Jonas.

Sofrer? Eu já estava sofrendo, Jonas não precisava se preocupar com isso.

- Gente, por favor? Eu não quero brigar, o meu dia está sendo tão maravilhoso...

- Está bem, mas nos prometa que vai parar de falar essas idiotices – disse Claudia gentilmente. – Pois toda vez que você toca nesse assunto, dizendo que o Róger, ou que nós nos importamos com o fato de você ser cadeirante, faz com que todos nós fiquemos tristes.

Embora eu estivesse me sentindo solitária, sem compreensão, acostumada com as pessoas me rejeitando, não havia percebido que eu finalmente encontrara amigos verdadeiros.

Na escola eu vivia com o grupinho dos rejeitados, éramos motivo de risos para o restante da turma. Ninguém sentava conosco, alguns tinham medo, outros vergonha e alguns não sabiam o que conversar comigo, era como se minha paraplegia fosse uma doença contagiosa.

- Vocês são as primeiras pessoas que me aceitam como eu sou – comecei a chorar.

Eu detestava mostrar fraqueza, mas a depressão nessas horas me dominava e na maioria das vezes, eu chorava sem motivo algum – porém aquele não era o caso.

- Não fique assim – disse Jonas limpando minhas lágrimas. – Nós mal a conhecemos pessoalmente, mas tenha certeza de que a amamos – ele se referia ao Róger também, pois Claudia me conhecia há muito tempo.

- Obrigada – respondi entre sorrisos e lágrimas.

- Acalme-se – disse ele dando-me um beijo no cabelo, pois meu rosto estava ensopado por novas lágrimas.

Realmente Jonas me considerava como uma irmã, meu coração ficou tão calmo ao vê-lo tão carinhoso comigo.

Eu tinha o Jacson, mas sentia falta de alguém da minha idade, alguém que realmente me entendesse, que não ficasse só pensando em carrinhos e lama, ou que me diagnosticasse com a velha frase de que eu estava fazendo tempestade em copo d’água – coisas de adolescentes. Jonas era a pessoa perfeita, o irmão ideal.

- Vocês são uns doces – eu disse numa voz trêmula.

- Desculpe tê-la feito chorar – disse Claudia, afagando meu cabelo.

- Claudia, você não tem nada a ver com isso, eu sei que preciso mudar o meu jeito de pensar, de ver, de encarar meus problemas. Preciso me adaptar a esse novo modo de vida, aceitar minha paraplegia. Isso é um assunto meu, portanto, não se culpe de maneira nenhuma com o meu choro.

Enquanto minha boca e a minha voz trabalhavam naquele discurso para não deixar Claudia culpada, minha mente voltava no mesmo ponto de sempre: Eu não vou aceitar nada, eu não quero ser paraplégica!

- Obrigada, Ana. – ela ficou tranquila após minha conclusão falsa.

- Vamos logo para casa, pois minha fome está aumentando – eu disse impetuosa.

- Ana, onde você estava? – perguntou minha mãe, preocupada, assim que voltamos para a cabana.

- Calma dona Francine. Eu estava no Cercado com a Claudia e o Jonas – eu sorri embora meus olhos demonstrassem que eu tinha chorado.

- Pelo amor de Deus, Ana. Vê se da próxima vez em que você for sair com seus amiguinhos, me avise.

- Não avisei porque você estava dormindo, me desculpe – fiz uma expressão de arrependimento, que a fez me perdoar.

- Já almoçou? – perguntou ela.

- Não, mãe. Aonde eu almoçaria fora daqui? – perguntei juntando as sobrancelhas.

- Então almoce logo – murmurou ela.

Claudia e Jonas estavam ao meu lado a todo o tempo, foram completamente ignorados por minha mãe. Ela ficou encarando-os por alguns segundos, porém, não falou nada.

- Vá almoçar – insistiu ela, exasperada.

Jonas revirou os olhos sem que ela percebesse, enquanto empurrava minha cadeira.

- Estou começando a odiar sua mãe – disse ele, explodindo de raiva. – Ela é contra que você se divirta? – perguntou ele, com entonação de afirmativa.

- Francine só quer ver a filha protegida, é isso – Claudia tentou amenizar a situação.

- Eu vou falar com ela depois, essa história de proteção está passando dos limites – eu disse furiosa.

Eu detestava o modo como todos passaram a me tratar depois da paraplegia, como se eu fosse uma boneca de porcelana, prestes a se partir no chão.

- Ana, mudando da água para o vinho, o que você e o Róger conversaram hoje? – Jonas engolia secamente uma farofa apimentada feita por Julia.

Eu senti meu corpo tremer ao me lembrar do encontro, mas uma pontada de raiva me atingiu antes mesmo de eu notar o tom vermelho que subia para minhas bochechas.

- Jonas, você quer saber o que seu irmão e eu conversamos? – eu estava perplexa ao vê-lo querer compartilhar minha privacidade.

- É. Você gostou dele? – Jonas emendava pergunta sobre pergunta.

- Desacelera – eu gesticulei com a mão. – Não tem jeito – murmurei irritada. – Vou ter que te dar detalhe – eu estava conformada com a curiosidade deles, estava conformada com a minha falta de privacidade.

- Anda logo... – Claudia mostrou-se mais curiosa do que Jonas. Eu já imaginava que ela reagiria assim.

- Está bem. Ele é muito simpático, conversamos muito, especialmente sobre trabalho...

- Trabalho? – Claudia arregalou os olhos, surpresa.

Senti levemente minha testa enrijecendo, e as sobrancelhas se encontrando.

- Sim. Ele me contou sobre sua profissão e eu lhe contei sobre a escola – eu sorri ao vê-los apavorados.

- Eu não posso acreditar que o Róger passou os últimos dias nos azucrinando para te conhecer e quando ele tem a oportunidade... Fala de trabalho? – Claudia estava com o rosto tenso, certamente controlava-se para não explodir de raiva.

- Claudia? O que você queria que ele fizesse? – perguntei rindo.

- Não sei Ana. Mas falar de trabalho não é o que nós esperávamos dele.

- Mas ele falou sobre outras coisas também, falou sobre um retrato que certa pessoa o deu, não é Claudia?

Rimos juntos, a tensão de Claudia sumia aos poucos. Empurrei minha cadeira para o meio deles, fiquei entre Claudia e Jonas, dei-lhes um abraço de urso.

- Vocês dois são muito curiosos, eu não vou dar tantos detalhes de minha conversa, mas se quiserem dizer alguma coisa a ele, diga que eu adorei cada segundo.

Percebi que ao lado deles eu me sentia a vontade, podia revelar o que eu estava sentindo em relação ao irmão deles – uma boa parte do que eu estava sentindo.

- Hmmm, você está apaixonada – Jonas apoiava seu braço esquerdo sobre a mesa, encostando-o no queixo, parecia pensativo.

Meu rosto fora ficando vermelho. Desviei os olhos daqueles dois malucos, tentei me concentrar numa resposta eficaz que o faria silenciar – eu já não estava mais tão à vontade assim.

- Cale a boca, Jonas – eu disse entre sorrisos e sermões. – Como eu poderia me apaixonar por uma pessoa que mal conheço?

- Simples – sorriu ele. – Do mesmo modo que milhões de pessoas se apaixonam. Isso é normal – disse ele, num tom calmo e expressivo demais.

- Ele marcou outro encontro? – Claudia segurava minha mão na expectativa.

- Sim – respondi encolhendo-me. A voz reprimida pelo medo.

- Sabia, eu sabia! – gritava ela, andando pela cozinha.

- O Róger é muito decidido do que fazer – Jonas falava como se não estivesse nada surpreso.

- Quando vai ser? – perguntou ela, sentando-se novamente.

- Ele disse que da próxima vez virá aqui, na cabana, me ver – eu estava ofegante, mal podia falar.

- Que lindo – Claudia repetia estas palavras por várias vezes. – vai dar namoro.

Meu estomago embrulhou, fiquei tonta só de pensar nessa hipótese.

- Você está bem? – perguntou Jonas, aflito.

- Estou, acho que sim – respondi balançando a cabeça a fim de parar com a tontura. – Não se empolguem – falei firmemente.

- Empolgar? Por que não? – Claudia estava em outro nível, poderia considerá-la como a mãe da empolgação.

- Porque eu nunca, jamais iria aceitá-lo como meu namorado – minha voz ficou rouca repentinamente. – Sei que vocês ficarão magoados, mas, a minha paraplegia atrapalharia tudo – suspirei.

Eu podia até me imaginar: Apaixonada, com um longo vestido de noiva, entrando na igreja... Vendo o meu pretendido no altar, o padre ao seu lado, toda a multidão de padrinhos e parentes me encarando... E eu, sentada numa cadeira de rodas enquanto a marcha nupcial estaria sendo tocada por algum primo talentoso. Não, não e não – eu me recusaria a pensar na possibilidade de participar daquilo, então para não haver vestígios, o amor era a metralhadora da qual eu sempre correria.

- De novo não – Jonas segurou as duas mãos sobre a cabeça, parecia estar enlouquecendo.

- Não adianta ficar assim, Jonas – eu falei apontando sua falsa insanidade. – Estou decidida. Se eu fosse uma garota normal como as outras... Com certeza aceitaria, porém não posso negar minha condição.

- Que estupidez – bufou Claudia.

- Vamos brigar de novo? – perguntei tentando acalmar a situação.

- Quantas vezes você quiser – respondeu ela, sorrindo estupidamente. – Ah! – gritou ela. – Se por acaso você gosta desta enfermeira aqui – referiu-se a si mesma. – Por favor, aceite o pedido de namoro dele, se não terá que procurar por outra.

Ela estava enfurecida, largou metade da comida no prato e bateu a porta da cozinha com tanta força, que fez meu copo de suco dançar na mesa.

- Nossa, que medo – eu disse sem demonstrar preocupação, embora meu coração tivesse se preparando para explodir.

- Claudia dificilmente brinca com coisa séria – Jonas ficou sem expressão alguma, a única coisa que eu pude notar foi um sorrisinho de canto em seu rosto.

- Perdi a fome – retribuí o seu sorriso sem expressão e fui para fora.

- Mana, olha o tamanho desse peixe – Jacson estava sentado no chão de frente para a cabana, enquanto papai limpava os peixes.

- É enorme – falei sem entusiasmo algum.

Eles estavam com uma bacia gigantesca, lotada deles. O cheiro daquele lugar ficara insuportável, tive que respirar o mínimo possível para suportar – o que era quase impossível.

- Pelo visto a pesca foi boa? – tentei puxar assunto com os dois que estavam completamente entretidos com a limpeza.

- Você não faz ideia – disse meu pai, sorrindo, porém juntando as sobrancelhas ao abrir outro peixe.

- Que nojo, Marcos – murmurou minha mãe, do outro lado da cabana.

- Nossa. Desde quando ela acordou, está sentada ali, tomando sol – eu disse aos sussurros, para ela não ouvir.

- É assim que ela gosta de se divertir – murmurou meu pai, enquanto passava sua mão, agora desocupada, cheia de escamas pelo rosto.

- Eca – fiz a careta mais feia que pude, quando vi aquela cena.

Ouvi a voz de Jonas aproximando-se dali. Fechei a cara, antes que ele chegasse.

- Pescaram bem? – alegrou-se ele.

- O mar estava para peixe – brincou meu pai, agarrando outro daqueles escamosos.

- Quer ajuda? – Jonas ajoelhou-se para ajudar, sem esperar a resposta.

Ele olhou-me pelo canto dos olhos, deu um sorrisinho de provocação e virou-se rapidamente para continuar a limpeza.

- Estou sobrando – sussurrei sem que ninguém ouvisse.

Até quando Jonas manteria aquele sorriso idiota nos lábios?

- Olá? – meu coração disparou quando ouvi aquela voz.

- Róger? – perguntou Jonas, virando-se subitamente, tão assustado quanto eu.

- A loja fechou mais cedo – explicou-se ele, pois ainda era horário de expediente.

- Quer a chave de casa, não é? – Jonas levantara-se para pegá-la em seu bolso. – Está aqui – disse ele, prestativo.

- Obrigada. Mas eu vim para falar com a Ana.

Meu corpo amoleceu. Se eu não estivesse numa cadeira de rodas e sim em pé, tenho certeza de que eu cairia no chão – mole como polenta.

Uma gota de suor escorreu pelo meu rosto, um vento gelado soprava nela, fazendo com que eu sentisse com clareza meu suor gélido.

- Ana? Você quer falar com a Ana? – meu pai levantou-se, deixando a faca de corte em cima de uma mesa improvisada. – Vocês se conhecem? – perguntou ele para mim.

- Sim – engasguei-me com a saliva. – Errr... Nos... Conhecemos hoje.

- É. Logo pela manhã – afirmou Róger, sorridente.

- Eu não quero parecer com aqueles pais chatos, mas o que fez você vir aqui falar com a minha filha?

- Gostei muito de conversar com ela, e para ser sincero, quero conhecê-la melhor – Róger estava tranquilo e ainda sorridente.

Meu pai olhou para mim, assustado talvez. Não sabia o que dizer.

- Mas, mas... – gaguejou ele. – Mas quer conhecê-la com qual intenção?

- Eu estou interessado em sua filha, Marcos. Não a conheci hoje, eu acompanho a história dela desde quando a Claudia começou a trabalhar para vocês. Sempre a admirei e hoje tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente. Acho que, de certa forma, ela percebeu meu interesse. Espero não estar te surpreendendo, Ana.

Ele olhava fixamente em meus olhos, eu falava, pedindo para ele se calar, porém nada saía de minha boca, era como se meu volume estivesse no mudo.

- Então quer dizer que você veio aqui, corajosamente, pedir minha filha em namoro? – meu pai ao falar essa última frase, já demonstrava sua aceitação.

- Sim. Mas, se o senhor preferir, eu posso vir outra hora – Róger falava com meu pai, porém não tirava os olhos de mim.

- Por mim tudo bem, rapaz. Agora, você precisa saber se a Ana quer te namorar ou não – meu pai coçava a cabeça com a ponta da faca que havia retirado da mesa.

- O que você me diz, Ana? – ele inclinou-se para ficar frente a frente comigo.

- Eu... Eu... Eu – minha voz falhava a todo instante. Não conseguia responder, estava parecendo um gato quando tenta tirar a bola de pelos da garganta.

Todos ficaram na expectativa. Jacson que estava tão entretido com a limpeza dos peixes parou imediatamente para ver o que eu responderia.

- Minha irmã vai ter um namorado? – perguntou ele para o Jonas.

- Róger, você deveria ter falado comigo primeiro... – finalmente consegui falar.

- Desculpe-me – ele não tirava aquele sorriso do rosto, parecia não ver meu nervosismo.

- Preciso pensar... – eu disse enquanto ouvia o resto da família vaiar.

- Você vai rejeitar esse tipão de olhos verdes? – perguntou minha mãe, aproximando-se.

- Confesso que eu errei – admitiu Róger. – Devia ter falado primeiro com você. Desculpe-me de verdade, Ana.

Eu mal consegui ouvir o que ele dizia, estava preocupada com a frase de Claudia, “Se por acaso você gosta desta enfermeira aqui, por favor, aceite o pedido de namoro dele, se não terá que procurar por outra.” Será mesmo que ela cumpriria aquela promessa maluca? Fiquei em pânico.

- Róger? Podemos conversar em outro lugar? – meu rosto era suplicante.

- Claro – ele estava muito calmo. – Vamos? – se direcionou à minha cadeira, com a permissão de meu pai e me levou para a cozinha.

- Aqui está melhor – meu corpo ainda tremia.

- Precipitei-me, não é? – Róger sentara sobre uma cadeira de bar que estava próxima ao fogão. Empurrou-me para perto dele.

- Um pouco – falei tentando não arfar.

- Mas, você não gostou? Ou melhor, você não quer namorar comigo? – ele parecia estar disposto a me entender, se a resposta fosse não.

- Como você mesmo pode constatar, eu sou paraplégica. Sei que você diz que isso não lhe incomoda, mas...

- Mas? – incentivou-me ele a continuar.

- Mas eu tenho medo de você se arrepender ou...

- Ana. Vamos andar conforme nossos passos aguentam? – perguntou-me ele sem que eu entendesse.

- O quê? – franzi a testa.

- Primeiro, aceite meu pedido, depois vemos o que vai acontecer, tenha certeza de que eu não me importo com sua paraplegia – ele era tão dócil com as palavras, logo meu rosto voltou ao seu estado normal.

Precisei de um tempo, mas logo respondi.

- Então... Eu aceito – respondi lentamente para não precisar repetir.

Róger pegou minha mão e a beijou com muita delicadeza, senti-me em um filme de época, romântico, mas de época.

- Você é linda, mesmo assustada, você continua linda – suas palavras dóceis entravam no meu ouvido como uma canção de ninar.

Ele tirou por fim, uma caixinha de dentro do bolso, era preta, porém delicada.

- O que é isso? – perguntei curiosa.

Ele abriu e dentro havia uma aliança, era prateada. Antigamente não existia essa história de aliança para namoro, mas hoje isso é comum.

- Posso? – pediu ele, enquanto pegava minha mão direita.

- Pode – fiquei envergonhada, pois ela estava tão fria e suada que era impossível não perceber.

- Nervosa? – perguntou-me ele.

- Muito – respondi com um sorriso trêmulo.

Ana – disse ele, a voz vagarosa e monótona. – Eu passei o dia imaginando como eu lhe faria este pedido. Mas não pensei que você aceitaria. Seus olhos, por mais que eu tente, são indecifráveis, eu não sabia se estava lhe agradando hoje no encontro, ou não.

- Você me surpreendeu desde o início. Nunca pensei que algum dia pudesse encontrar alguém como você – eu tossia constantemente para que minha voz saísse.

- E isso é bom? – perguntou-me ele, que ainda segurava minha mão, com a aliança já colocada.

- Sim. E espero confiantemente que continue como está. Ou melhore.

Rimos juntos. Eu, enfim, estava me acalmando. Boa parte de minha rápida aceitação se dava à Claudia – minha chantagista enfermeira.

- Agora, coloque a minha – ele entregou-me a aliança, esticando junto com ela sua mão direita.

Segurei sua mão com firmeza, ela era forte, mas ao mesmo tempo, tão frágil, os dedos finos e delicados, porém com a palma grossa, calejada.

- Prontinho – eu disse por fim.

- Quanto tempo vai ficar aqui na Toca? – perguntou ele.

- Acho que uma semana – eu permaneci por um instante, com os olhos distantes dali.

- Algum problema? – ele me encantava cada vez mais, sua voz tornava-se a cada minuto, mais doce e suave.

- Só estou pensando – suspirei. – Meu pai decidiu vir para cá, porém eu não pensei que esse acampamento pudesse realmente mudar alguma coisa em relação a minha visão de mundo. Acho que eu me enganei – disse pausadamente essa última frase.

Confesso que não podia sair por aí gritando que eu estava curada, restaurada da depressão, mas sentia sim uma vontade de viver que antes eu não sentia – que eu não queria sentir.

- Certamente mudou para melhor, não é? – ele levantara-se por alguns minutos, mas logo se sentou novamente.

- Sim. Embora eu tenha que melhorar... E muito – concluí.

- O que conta, é você querer. O resto vem aos poucos – suspirou ele.

A semana estava passando rápido demais. Todos os dias, Róger vinha me ver, porém eu não abandonara minha liberdade de diversão com o Jonas e a Claudia.

- Namorando... Eu estou ficando velho, isso sim – ouvia meu pai dizer essa frase para todos aqueles que ainda não sabiam da novidade.

- Aonde vamos? – perguntei eufórica.

- Surpresa – respondeu Jonas, tampando meus olhos com uma venda de retalhos.

- Já chegamos? – eu perguntava a cada meio segundo.

- Quase – Claudia respondia, pela milésima vez.

- Chegamos! – disse Jonas com veracidade.

Tirei aquele pano do rosto. Meus olhos estavam cobertos por uma camada de chuviscos. Agonizante. Opaco.

- Eu... Não... Acredito! – gritei cantarolando.

Meus olhos encheram-se de lágrimas.

- De quem foi a ideia? – perguntei arfando, com a mão sobre o peito acelerado.

- Sinceramente? A ideia foi de todos, desde o seu pai até a criação do cercado – exagerou Claudia.

Era o lugar mais lindo que eu já vira desde que fiquei paraplégica. O mais emocionante, o mais carinhoso.

- Vocês montaram uma sala de fisioterapia, aqui, para mim? – perguntei sem respeitar os monólogos.

Eu me sentia realmente amada – amada por todos.

- Deu muito trabalho, o mais difícil foi fazer você não perceber – disse Jonas limpando suas lágrimas, fingindo-se de forte.

Era uma sala feita sem teto, havia uma lona transparente na cobertura. Dava para ver o céu, e nas laterais podiam-se ver as árvores, pois também não havia paredes. Eram basicamente troncos firmes de árvores, levantados apoiando alguns caibros, com aquela lona transparente. O chão era de azulejo, dando assim, a impressão de estarmos dentro de uma casa. Os aparelhos estavam todos lá, me senti dentro da maior e melhor sala fisioterápica.

- Mas, eu vou embora no sábado – eu disse entristecendo-me.

- Prometo te trazer aqui todos os dias, antes de eu ir para o trabalho – disse meu pai que estava escondido atrás de um arbusto.

Eu pulei na cadeira de rodas, meu corpo todo se estremeceu.

- Que susto – murmurei quando o vi saltar em minha direção.

- O que achou da ideia? – perguntou meu pai, curioso.

- É maravilhosa. E a fisioterapeuta? – referia-me a doutora Bárbara, que me acompanhava desde o inicio da paraplegia.

- Ela concordou em vir, achou maravilhosa a ideia – meu pai só faltava sair beijando todo mundo, sua alegria era contagiante.

Conversamos dentro da sala por várias horas, nos acomodamos numa poltrona gigante que ficava na lateral direita, próxima a um banheiro.

Eu fiquei de frente para todos, me senti mais alta, pois a poltrona era menor em altura que minha cadeira de rodas.

- Quer sentar aqui conosco? – perguntou Jonas.

- Não, vou ficar aqui mesmo – respondi agradecida.

- Cheguei muito tarde? – era Róger, com aquela voz reconhecível a léguas de distância.

Ele estava com metade do corpo dentro da sala e a outra metade, inclinada para fora. Uma das mãos, escondidas atrás da porta. Deixando-o lindamente misterioso.

- Entre. O que você tem aí, rapaz? – perguntou meu pai, apresentando-se mais curioso do que eu.

- Flores – revelou-as em um sorriso esplendoroso, entregando-me.

Meus olhos revelavam surpresa absoluta. Nunca havia ganhado, em toda minha vida, um buque de flores... E aquele era lindo.

- Rosas vermelhas? – eu sorria enquanto as cheirava. – Obrigada – eu estava delirantemente feliz com o presente.

- Como soube que nós estaríamos aqui? – perguntou Jonas a ele.

- A dona Julia me avisou assim que eu cheguei à cabana – respondeu ele, sem tirar os olhos de mim.

- Marcos? Cadê o seu romantismo? Já faz mais de dez anos que eu não ganho um buque como aquele – minha mãe o cutucava com suas unhas afiadas.

- Acho que você inventou moda por aqui, rapaz – disse meu pai, enquanto segurava com uma das mãos os braços da mamãe e com a outra, fazia cócegas nela.

Todos riram ao ver esta cena.

- Sente-se – apontei ao Róger uma almofada vazia.

Ele sentou-se e como de costume, puxou minha cadeira de rodas para perto dele. Ficamos frente a frente. Ele não tirava seus olhos dos meus, nem por um segundo.

- Quando você vai embora? – perguntou ele, depois de um grande suspiro.

- Sábado – respondi rapidamente.

- Preciso do endereço de sua casa – Róger falava tão baixinho que ninguém conseguia ouvir a não ser eu que estava muito perto dele.

- Fique sossegado, eu não vou sumir – Gargalhei ao ver sua preocupação.

De repente todos pararam de conversar e se concentraram na minha gargalhada.

- Qual é a graça? – perguntavam a cada segundo.

Róger ficou vermelho, seus olhos imploravam para que eu nada falasse sobre seu medo de me perder, de eu sumir.

- Estou rindo de uma piada que o Róger me contou.

- Que piada? – minha mãe demonstrou curiosidade.

- Depois ele conta a piada, não é Róger? – eu ria.

- Depois – disse ele, suando frio. – Posso falar com você em outro lugar? – perguntou ele, preocupado.

- Pai, Róger e eu vamos sair um pouquinho, está bem?

Meu pai assentiu com a cabeça. Róger tirou-me da sala fisioterápica e me levou para a cabana de doces.

Sentou-se em uma cadeira para fregueses e pediu duas paçocas de amendoim, meu doce preferido.

- Obrigada – eu disse quando ele entregou a minha. – Então, o que tem de tão importante para falar, moçinho? – tampei a boca com a mão enquanto eu falava, pois ela estava cheia de farelo.

-Você gosta mesmo de mim? – ele segurou minha mão direita que acabava de se livrar do último pedaço de paçoca.

-Gosto – mordi os lábios com a pergunta. – Aonde quer chegar? – apressei-o.

- Não posso continuar o namoro sem antes saber se o que você sente por mim é tão verdadeiro e forte como o sentimento que eu tenho e sinto por você – ele parecia tranquilo mesmo apresentando-se nervoso.

- Bem, eu não sei exatamente o que você sente por mim. Mas, eu sei que o meu sentimento por você é forte o suficiente para continuar com o namoro – respirei fundo. – Embora, acho que você está querendo terminar... – suspirei com calma para não chorar.

Desde o momento em que Róger colocara o anel de compromisso em meu dedo, eu esperava pelo pior, todos os dias eu ficava a espera dele desistir, terminar tudo, dele encontrar uma garota mais interessante e que lhe desse menos trabalho.

- Não, não e não – ele estava perplexo. – Eu não quero terminar – Róger apertou minha mão com força. – Só precisava saber se você estava tão envolvida quanto eu – seu rosto estava sorridente com a minha resposta.

- Então... É isso, gostamos um do outro – fiquei rouca na última frase.

- Quero te levar num lugar – ele sorria enquanto falava.

- Aonde quer me levar? – perguntei curiosa.

Percebi que a família toda de Róger adorava mistérios... Surpresas.

- Vamos – ele se levantou sem me responder, mantinha o sorriso no rosto.

Fomos conversando para o tal lugar desconhecido, ele empurrava minha cadeira cuidadosamente.

- Sabia que eu posso comandar minha cadeira de rodas? Vocês não precisam ficar empurrando. Eu mesma posso fazer isso – eu estava nervosa e deixei que meu tom de voz ficasse aparentemente irritado, porém não era isso o que eu queria.

Róger parou de me empurrar, ergueu os braços como se estivesse desistindo.

- Desculpe-me eu só queria te ajudar – disse ele, num tom sarcástico.

- Me desculpe também, não foi minha intenção ser grosseira contigo – eu fiquei angustiada com a minha reação.

- Eu estou brincando, sua boba – Róger falou enquanto voltava a empurrar minha cadeira. – Eu a ajudo porque gosto – disse ele sorridente.

- Já que insiste – respondi sorrindo também.

Alguns poucos minutos depois, Já havíamos chegado ao tal lugar.

- Chegamos – ele cantarolou a palavra.

- Um paiol? – perguntei num tom de voz desanimado.

- Vamos entrar e depois você faz suas críticas – Róger abriu a porta do paiol enquanto eu entrava.

- Róger! – gritei alegremente.

- Eu não disse, veja para depois criticar – ele estava satisfeito com a minha reação.

- Meu pai não vai me deixar ficar com ele – eu falava enquanto agarrava o pobre animal.

Era um filhote de cachorro, branquinho, vira lata, porém eu daria muito dinheiro para ter aquela beleza em minha casa, em minha vida.

Seu latido era doce, assustado, mas logo foi se acostumando comigo. Cheirava leite, suas orelhas estavam sempre baixas e seu rabinho entre as pernas finas.

- Como vai chamá-lo? – disse Róger, brincando com uma de suas orelhas.

- Félpo – respondi de imediato, enquanto o colocava em meu colo. – Félpo, o felpudo – completei.

Quando eu era pequena, com mais ou menos cinco anos de idade, eu adorava colocar nome nas minhas bonecas e sonhava em ter um animalzinho quando crescesse. Todos os meses eu comprava algum brinquedinho de cachorro com a minha mesada. E um desses presentes era uma coleira bordada com o nome Félpo. Lembro-me que na época eu fiquei encantada, mas não tinha dinheiro suficiente para comprar a tal coleira. Minha bondosa irmã, Clarice, deu metade de sua mesada para eu realizar esse sonho estranho.

- Nossa. Quanta criatividade – disse Róger, maravilhado. – Eu já falei com o seu pai, ele aceitou que ficasse com o Félpo – ele sorriu.

- Obrigada! – gritei, tive que segurar o Félpo com força, pois ele se assustou com meu grito. – Cadê a mamãe dele? – perguntei parecendo uma criançinha de dois anos.

Róger riu.

- Ela é do nosso vizinho. Félpo terá que ser criado sem mãe – ele mentiu estar triste.

- Engraçadinho – eu disse quando o vi encher as bochechas de ar e fazendo um biquinho para dar mais veracidade a sua falsa tristeza.

- Agora, precisamos voltar – falou Róger.

- Mas, acabamos de chegar – fiz cara de criança birrenta.

- Ana, cadê seus modos? – ele riu. – Hoje é quinta feira, prometo te trazer aqui amanhã. Aí você aproveita para levar o Félpo.

- Tudo bem.

Soltei o Félpo no chão. Ele já parecia gostar de mim. Era lindo ver seus olhinhos pretos lagrimejar enquanto ele me olhava.

- Tchau Félpo. Amanhã eu volto – disse brincando pela última vez com suas orelhinhas.

- Gostou do presente? – perguntou Róger quando saímos do paiol.

- Amei. Você sabe agradar uma garota. Quantas namoradas o senhor já teve, hein? - gargalhei ao perguntar.

- Essa é difícil – respondeu ele. – Algumas – completou.

- Algumas... Quantas? – perguntei curiosa.

- Algumas... Algumas – respondeu-me rindo. – Exatamente cinco, sem contar você na lista.

- Só isso? – assustei-me com a resposta.

- Eu agradeço – ele riu exaltando a palavra. Não sou do tipo namorador – concluiu ele. – E você, quantos namorados já teve? – perguntou ele, curioso.

- Você é o primeiro – respondi enquanto meu rosto ficava vermelho.

- Está mentindo, não é? Você é tão linda e com esses olhos azuis... – ele riu de novo.

- Seu bobo – dei-lhe uma bofetada leve no braço direito.

Róger acima de tudo sabia ser um cavalheiro, contudo, ele não tocou mais nesse assunto.

- Que cheiro estranho é esse? – Perguntou Jonas, assim que chegamos à cabana.

- É meu novo perfume – eu respondi rindo.

- Você precisa de um banho, urgente – interferiu Claudia, empurrando-me para o banheiro.

- Eu venho te ver a noite – disse Róger quando me viu sendo carregada.

- Claudia. Sua mal educada! – falei enquanto riamos juntas.

- O que vocês aprontaram? – perguntou ela, curiosíssima.

- Ele me deu um filhote de cachorro, o Félpo – suspirei quando me lembrei daquele focinho molhado.

- Róger é um doce, não é? – Claudia preparava a banheira.

- Ele é um pote de mel! – gritei alegremente, rodando a cadeira em círculos.

Claudia me ajudou com o banho. À noite, como combinado, Róger estava lá na cabana de refrigerantes, conversando com meus pais.

- Olá – eu disse aproximando-me dele.

- Que cheirosa. O que aconteceu com o novo perfume vira-lata? – ele riu.

- Vou usá-lo somente em ocasiões especiais – respondi animada.

Minha mãe que estava sentada no lado esquerdo da mesa, olhava-me com uma cara enigmática.

- Mãe? Está tudo bem? – perguntei a ela.

- Sim – ela balançou a cabeça, parecendo estar pensando em outra coisa. – Eu só estava distraída – adicionou.

Continuamos a conversar, papai estava todo empolgado com os resultados do acampamento.

- Vamos repetir no final do ano? – disse ele, olhando para minha mãe.

Ela não estava prestando atenção em nada do que falávamos. Seus olhos estavam distantes, sua testa franzida e sua boca inclinada em um biquinho.

- Francine? – perguntou meu pai, passando a mão na frente de seus olhos.

Ela nem ao menos piscou.

- Francine? – insistiu ele, mas desta vez, preocupado.

Depois de um grande segundo, ela despertou de seus pensamentos.

- Estão falando comigo?

- Nossa. No que você estava pensando? – perguntou ele, assustado.

- Em nada – respondeu ela na defensiva. – Minha mente estava vagando um pouco no passado.

Ficamos sem entender, porém meu pai não deixou que perguntássemos sobre o que ela pensava do passado, pois continuou a conversa como se nada tivesse acontecido.

- E ai? Vamos repetir o acampamento no final do ano? – perguntou ele, novamente.

- Pode ser – ela não estava preocupada em se concentrar na resposta. Tinha alguma coisa mais importante para pensar.

- Mamãe está estranha – resmunguei no ouvido de Róger.

- Ela parece estar distraída ou preocupada com algo – concordou ele.

Depois de algumas horas, fomos dormir. Róger despediu-se de mim, prometendo voltar no outro dia para me levar ao paiol.

- Boa noite – eu disse por fim, antes de cair na cama. Eu estava com o corpo todo doído de tanto cansaço.

A cama era a terra e eu era a rocha, dormindo sem vida! Dura, imóvel na cama, sem sonhar ou ter pesadelo.

Amanheceu o dia, estávamos em sintonia de despedida. O pai da Claudia que poucas vezes aparecera, veio nos ajudar com as malas.

- Vocês vão amanhã bem cedinho, não é? – perguntou Jonas, tristemente.

- Vamos – eu respondi no mesmo tom. – Preciso voltar à escola. Já faltei demais – murmurei.

Jacson passou por nós, empurrando uma mala três vezes maior do que ele. Seus braços estavam com as veias saltadas de tanto se esforçar.

- Quer ajuda? – perguntou Jonas, dominando a mala dele com apenas uma mão.

Mamãe passou por mim, encarando-me. Não parou para dizer nada. Pensei que eu havia feito algo errado, mas certamente não, pois se não ela teria parado para me dar uma bronca.

- Ana – disse Jonas que acabava de voltar do bagageiro. – Vamos ao Cercado à tarde? – ele estava a fim de passar nossos últimos momentos juntos no primeiro lugar que nos conhecemos.

- Vamos, mas, Jonas? Eu vou fazer fisioterapia aqui, se esqueceu? Não precisa ficar tão triste – eu disse tranquilizando-o.

- Mas é que nós não nos veremos mais com tanta frequência...

- Bobagem – eu o interferi. – Posso levar o Róger? – perguntei.

- Pode, é claro, mas acho difícil ele ir porque a loja ficará aberta até tarde – respondeu ele.

- Ele trocou o turno dessa semana por minha causa – eu disse alegre, me lembrando da nossa conversa de despedida do dia anterior.

- Eu devia ter imaginado – Jonas riu.

À tarde, fomos todos ao Cercado, os animais pareciam saber que eu iria embora. Algumas bezerras esfregavam suas enormes barricas em mim, como sinal de despedida.

Róger rira o tempo todo, porém ficava atento para que nada de errado acontecesse.

- Promete me esperar voltar da escola antes de ir embora, quando você for fazer sua fisioterapia? – perguntou Jonas de um jeito engraçado.

- Prometo. Aproveito e passo na loja para ver o Róger – respondi enquanto Róger segurava minha mão.

Passamos a tarde olhando a criação do Cercado. Antes de a noite chegar completamente, Róger e eu fomos buscar o Félpo.

- Olá meu lindo? – eu disse assim que ele abriu o paiol.

Félpo ficou alegre quando me viu. Ele estava sentado numa caminha improvisada por Róger. Seus olhinhos pretos estavam atenciosamente fixados em meu rosto. Seu rabinho peludo balançava de um lado para o outro, revelando sua alegria.

- Como você está? – eu falava como se estivesse conversando com um ser humano.

Ele balançava o rabinho cada vez mais, parecia responder minha pergunta.

- Vamos, Ana. Nós não temos muito tempo. A noite está chegando – disse Róger delicadamente, porém acelerado.

Ele colocou o Félpo vagarosamente em meu colo. Eu o segurei fortemente para que ele não escapasse enquanto íamos para a cabana.

- Olá pessoal? - eu disse quando chegamos.

Ergui as patas de Félpo, colocando-o a minha frente para dizer que era ele quem estava falando.

Todos riram. Claudia correu em minha direção, agarrando as bochechas do pobre Félpo.

- Que doçura – disse ela, enquanto balançava-as para lá e para cá.

- Cuidado para não machucá-lo, Claudia – preocupei-me quando o ouvi resmungar.

- Ela dá mais atenção para o cachorro do que para mim – disse Róger, fazendo-se de vitima.

A gargalhada do povo reunido aumentou com essa declaração de Róger.

A noite foi tranquila, ninguém pode reclamar que eu estava fedendo, pois todos haviam brincado com o Félpo. Certamente eu daria um banho nele assim que voltássemos para casa.

Meu cabelo estava solto, porém preso com algumas presilhas em miniatura, deixando a minha longa franja, presa ao restante dos fios.

Róger brincava com as presilhas com formato de borboleta, ficava alisando-as como se fossem de verdade.

Eu o olhei vagarosamente.

- Quer uma borboleta para você, Róger querido? – perguntei sarcasticamente.

Ele sorriu com a pergunta.

- Engraçadinha – murmurou em meu ouvido. – Mas, pensando bem, eu quero – respondeu ele, sem tirar o sorriso da cara.

- Quer? – assustei-me.

- Para guardar de recordação – disse ele, com os olhos luminosos.

- Mas, eu não vou morrer e nem ir embora, por que quer guardar recordações? – eu ri quando ele arregalou os olhos para a palavra morrer.

- Que horror – disse-me ele delicadamente. – Você prometeu, agora terá que cumprir.

Tirei uma borboletinha amarela que estava próxima a minha orelha esquerda e entreguei a ele.

Distraída, passei os olhos pelo restante da cabana e vi Jonas encarar-me. Senti frio, meus braços estavam com os pelos saltados por causa da ventania da chuva que estava prestes a acontecer.

- Ana? – Jonas olhou-me misteriosamente.

- O quê? – perguntei assustada, pois ele parecia estar desaprovando algo que eu havia feito.

- Por que não usa o poncho? Combina com suas presilhas – disse ele, encarando meu cabelo.

- Poncho? – perguntou Róger ingenuamente.

- Ganhei dele, presente de aniversário atrasado – expliquei.

- Ah! – exclamou Róger.

- Me esqueci completamente dele – respondi a Jonas, mentindo.

Ele sorriu.

- Você não gosta dele, não é? – perguntou-me ele.

- Eu gosto Jonas. Já disse que gosto – eu me fiz de irritada, porém sabia que ele estava certo, eu detestei o poncho.

- Não fica brava. Foi só um comentário – disse Jonas, bocejando.

- Acho que está na hora de irmos – Róger pareceu entender o bocejado de Jonas como se fosse um alerta de que era tarde.

Eu não fiz objeção, pois também estava com sono, porém fui educada em pedir para eles voltarem antes de partirmos.

- Estaremos aqui – respondeu Róger.

Ele me deu um rápido beijo nos lábios, temendo que meu pai reclamasse, mas meu pai não se importava com isso.

- Até amanhã – disse ele vermelho ao ver Jonas rir da cena.

- Até amanhã – respondi fazendo careta para o Jonas.

por: Fernanda S. Silveira.